segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Clarice e os cães

Na manhã que Clarice perdeu seus cães, ninguém sabe o que aconteceu com ela naquela manhã. Uns dizem que ela esperou no quintal que o dia amanhecesse, com os cães ao seu lado. Depois, como um soldado, fez sentinela no portão de casa esperando trazerem uma encomenda; contam que nessa encomenda tinha botões, rendas, flores, seda, veludo e cetim; que sentada ao lado de uma grande janela, vento no rosto, costurou e alinhavou fios, linhas e tecidos, que colorida e esvoaçante foi à feira do bairro e cheirou ervas e grãos, comprou pães, peixes, rações e adubos.
Na manhã que Clarice perdeu seus cães, ninguém sabe o que aconteceu com ela naquela manhã. Uns dizem ser testemunha ocular que por onde ela passou sentiram um cheiro de rosas, que seus cães fizeram um escarcéu quando a seguiram na feira, e, ela ria num cruel divertimento. Dizem ainda que nessa mesma manhã ela foi na estação ao encontro de um homem de terno azul e óculos escuros, que o viu partir sentado numa janela do lado esquerdo do trem dando adeus com um lenço branco enquanto seus cães latiam como incentivando a despedida.
Na manhã que Clarice perdeu seus cães, ninguém sabe o que aconteceu com ela naquela manhã. Uns dizem que após ela sair da estação de trem foi vista bêbada caminhando pela cidade e falando com os seus cães e outros bichos, com pássaros, árvores e jardins. Que se encaminhou ao mar e nele entrou e os cães farejavam o ar, rosnavam, latiam e sentaram a esperá-la. Alguns surfistas comentaram que Clarice ao adentrar no mar deixou de ser humana e tornou-se uma gaivota, outros que foi uma tartaruga marinha e uns pescadores contam que viram ela se transformar em sereia, talvez Iemanjá.
Na manhã que Clarice perdeu seus cães, ninguém sabe o que aconteceu com ela naquela manhã, mas com os cães uns dizem que nunca mais voltaram para casa, continuaram sentados à beira mar, esperando Clarice. Numa dessas manhãs que já duram dias, meses e talvez anos, um banhista madrugador contou que viu uma moça sair do mar e afagar os cães, enquanto eles abanavam as caudas, latiam e rosnavam, como naquela manhã que Clarice perdeu seus cães.
(by, franck)
(imagem: net)

3 comentários:

  1. ...a Clarice perdeu os cães, os cães perderam a Clarice, mas você jamais perderá esta cumplicidade, esta arte tamanha e maravilhosa de brincar com as palavras, como a criança brinca no parque em tardes de domingo!...encanto puro!

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  2. Clarice provavelmente encontrou-se após um longo sumiço de si mesma... E você vem se encontrar comigo nestas palavras juntadas num jeito só seu.

    Suzana Guimarães, Lily

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  3. E nessa manhã eu me perco docemente por aqui.
    Nessa leveza com cheiro de maresia.

    Bjok
    L.L.

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(Quem dá a volta ao zodíaco comigo...)

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