sexta-feira, 24 de julho de 2015

Cúmplices


                 

Somos sobreviventes, você me diz, enquanto esboço um sorriso, tomo um gole de caipirinha e contemplo a tarde azul, o mar, suas mãos grandes sobre a mesa, seus olhos castanhos e como você perdeu cabelos nesses quase dois anos que não nos víamos. Sim, somos sobreviventes, concordo, enquanto você pede outra cerveja, encaminha-se para a praia e fico pensando em como você emagreceu, não usa mais barba e que fica tão sedutor de sunga amarela, contrastando com sua pele morena e agora tão pálida, após o período que ficaste no Canadá.
Somos sobreviventes do nosso amor, mesmo quando você decidiu ir embora, penso. Como pessoas adultas, civilizadas e analisadas, sobrevivemos as mágoas, aos rancores, a solidão que nos acompanhava. Lembro você me dizendo que “cavalos e cães morrem sozinhos e aos milhares atravessam rios para  se salvar”. Será que você resolveu ir embora para se salvar de você mesmo, de mim, de nós? Será que você se salvou nesses dois anos em terra estrangeira? Será que você se salvou atravessando oceanos? Peço outra caipirinha e o sol cai lilás e crianças brincam com seus cães á beira mar. Você me acena da água, como nos velhos tempos, como se nada tivesse mudado, como se dois anos tivesse sido ontem. Enquanto você abraça ondas, lembro de nossos abraços na cama que nos acolhia todas as noites, até você ir embora, até perceber que nosso jardim ficou áspero, os gatos ficaram mudos e eu fiquei sussurrando pelos cantos, pelas ruas, pela cidade. A casa ficou grande demais sem você e eu que dizia ser adulto e analisado, comecei a sentir saudades sua, mandar e-mails, escrever poemas, programar viagens para visitá-lo. Voltei aos bares, restaurantes, praias e tantos outros lugares marcados por nossas presenças e sua ausência, na tentativa de amenizar as lágrimas, a cama vazia de você, o jardim secando e os gatos mudos.
Sobrevivi ao seu cheiro que ainda ficou entranhando por tanto tempo em cada lençol, cada toalha, cada recanto da casa que foi nossa. Sobrevivi as várias caixas que deixaste guardadas no porão   repletas  de  lembranças, que algumas manhãs com a boca seca, o rosto em prantos, descia para manusear folhetos turísticos da Europa, revistas de Feng Shui,  cartões postais de lugares remotos, reportagens sobre movimentos ecológicos, como se seus pertences fossem objetos recolhidos após um naufrágio. Até que esqueci de descer, como esqueci das caixas e o seu cheiro se perdeu entre outros. Agora você lá, na água, tão próximo e como se sua presença não fosse outra como daqueles outros dias, tão essencial, tão imprescindível.
Sobrevivemos aqueles três anos que dividimos a cama e a mesma cidade com seu mar sempre á vista e que emite uma luz que seguramente é fruto do sal marinho,do sol, com  seus casarões deteriorados por tantos verões, mas que adorávamos subir e descer suas ladeiras no carnaval e nas festas juninas. Sobrevivemos os gostos similares. As sessões de cinema sem ninguém além de nós dois. Caio Fernando Abreu. Ioga. Uruguai. Natal. Você. Eu. Você. Nós. Mas será que sobrevivemos aos planos? Ir à Argentina nas férias. Ver o pôr do sol em São Thomé das Letras. Um verão em Paris. Fazermos nosso mapa astral.
O que você trouxe para mim? Pergunto quando retornas da água, salgado e belo, ainda com gotículas d’água escorrendo  pelo corpo, a sunga deixando seu sexo à mostra –ou quase – enquanto se seca ao vento, toma mais cerveja e diz que trouxe incenso de verbena, o roxo daquelas tardes, um olho escancarado, estrelas falsas... brincando com um poema de Caio Fernando Abreu que líamos juntos em algumas madrugadas de insônia e tesão e quando ainda a paixão nos deixava acordados até o amanhecer.  Sorrio e digo que os sobreviventes às vezes aparecem em busca de papo e você diz que veio porque sentiu saudades, porque foi realmente feliz comigo dentro das quatro  paredes do quarto da casa que foi sua também, nessa cidade. Mas agora sabia também que para se desenvolver numa cidade, no mundo, na vida, era preciso se retirar e se colocar a salvo por conta própria.
Somos sobreviventes, dizemos, enquanto a noite nos encontra leves e tontos de maresia, salitre e álcool. Recolhemos nossas coisas e no bar começa a tocar uma música de Angela RoRo, cantarolamos juntos e nos encaminhamos para o carro, sorrindo cúmplices.



(Quem dá a volta ao zodíaco comigo...)

EU...

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Um brasileiro-nordestino, um cara comum, qlq um, como diria Caetano Veloso...