Somos
sobreviventes, você me diz, enquanto esboço um sorriso, tomo um gole de
caipirinha e contemplo a tarde azul, o mar, suas mãos grandes sobre a mesa,
seus olhos castanhos e como você perdeu cabelos nesses quase dois anos que não
nos víamos. Sim, somos sobreviventes, concordo, enquanto você pede outra
cerveja, encaminha-se para a praia e fico pensando em como você emagreceu, não
usa mais barba e que fica tão sedutor de sunga amarela, contrastando com sua
pele morena e agora tão pálida, após o período que ficaste no Canadá.
Somos
sobreviventes do nosso amor, mesmo quando você decidiu ir embora, penso. Como
pessoas adultas, civilizadas e analisadas, sobrevivemos as mágoas, aos
rancores, a solidão que nos acompanhava. Lembro você me dizendo que “cavalos e
cães morrem sozinhos e aos milhares atravessam rios para se salvar”. Será que você resolveu ir embora
para se salvar de você mesmo, de mim, de nós? Será que você se salvou nesses
dois anos em terra estrangeira? Será que você se salvou atravessando oceanos?
Peço outra caipirinha e o sol cai lilás e crianças brincam com seus cães á
beira mar. Você me acena da água, como nos velhos tempos, como se nada tivesse
mudado, como se dois anos tivesse sido ontem. Enquanto você abraça ondas,
lembro de nossos abraços na cama que nos acolhia todas as noites, até você ir
embora, até perceber que nosso jardim ficou áspero, os gatos ficaram mudos e eu
fiquei sussurrando pelos cantos, pelas ruas, pela cidade. A casa ficou grande
demais sem você e eu que dizia ser adulto e analisado, comecei a sentir
saudades sua, mandar e-mails, escrever poemas, programar viagens para visitá-lo.
Voltei aos bares, restaurantes, praias e tantos outros lugares marcados por
nossas presenças e sua ausência, na tentativa de amenizar as lágrimas, a cama
vazia de você, o jardim secando e os gatos mudos.
Sobrevivi ao
seu cheiro que ainda ficou entranhando por tanto tempo em cada lençol, cada
toalha, cada recanto da casa que foi nossa. Sobrevivi as várias caixas que
deixaste guardadas no porão repletas de
lembranças, que algumas manhãs com a boca seca, o rosto em prantos,
descia para manusear folhetos turísticos da Europa, revistas de Feng Shui, cartões postais de lugares remotos, reportagens
sobre movimentos ecológicos, como se seus pertences fossem objetos recolhidos
após um naufrágio. Até que esqueci de descer, como esqueci das caixas e o seu cheiro
se perdeu entre outros. Agora você lá, na água, tão próximo e como se sua
presença não fosse outra como daqueles outros dias, tão essencial, tão
imprescindível.
Sobrevivemos
aqueles três anos que dividimos a cama e a mesma cidade com seu mar sempre á
vista e que emite uma luz que seguramente é fruto do sal marinho,do sol, com seus casarões deteriorados por tantos verões, mas
que adorávamos subir e descer suas ladeiras no carnaval e nas festas juninas.
Sobrevivemos os gostos similares. As sessões de cinema sem ninguém além de nós
dois. Caio Fernando Abreu. Ioga. Uruguai. Natal. Você. Eu. Você. Nós. Mas será
que sobrevivemos aos planos? Ir à Argentina nas férias. Ver o pôr do sol em São
Thomé das Letras. Um verão em Paris. Fazermos nosso mapa astral.
O que você
trouxe para mim? Pergunto quando retornas da água, salgado e belo, ainda com
gotículas d’água escorrendo pelo corpo,
a sunga deixando seu sexo à mostra –ou quase – enquanto se seca ao vento, toma
mais cerveja e diz que trouxe incenso de verbena, o roxo daquelas tardes, um
olho escancarado, estrelas falsas... brincando com um poema de Caio Fernando
Abreu que líamos juntos em algumas madrugadas de insônia e tesão e quando ainda
a paixão nos deixava acordados até o amanhecer.
Sorrio e digo que os sobreviventes às vezes aparecem em busca de papo e
você diz que veio porque sentiu saudades, porque foi realmente feliz comigo
dentro das quatro paredes do quarto da
casa que foi sua também, nessa cidade. Mas agora sabia também que para se
desenvolver numa cidade, no mundo, na vida, era preciso se retirar e se colocar
a salvo por conta própria.
Somos
sobreviventes, dizemos, enquanto a noite nos encontra leves e tontos de
maresia, salitre e álcool. Recolhemos nossas coisas e no bar começa a tocar uma
música de Angela RoRo, cantarolamos juntos e nos encaminhamos para o carro,
sorrindo cúmplices.
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