segunda-feira, 29 de março de 2010

Achados & Perdidos


Sabe aqueles dias chuvosos que você começa a remexer em armários, caixas e gavetas? Pois foi assim que domingo (28/03/2010) encontrei essa carta escrita e não sei se enviada para um amigo, vou transcrevê-la aqui:
... Chove. Por dois dias as águas das chuvas caem sobre essa Ilha. São Luís, como todo o nordeste, é uma cidade sem baixas temperaturas, quente o ano todo, isso para mim é perfeito por um lado, para trabalahr, por exemplo, pois odeio acordar nas manhãs frias; e acordar para mim é não ter nenhuma atividade particular prevista quando se levanta da cama, talvez escovar primeiro os dentes, talvez resolver fuma um cigarro, ou mesmo ouvir um pouco de música. Às vezes, enfim, espreguiçar-se demoradamente sob os lençóis, pegar o telefone e ligar para alguém, escolhido ao acaso, pode ser qualquer um, simplesmente para poder ouvir alguma voz lhe dar bom-dia. Por outro lado, meu caro, se você não tem noites como esta que te escrevo, você perderia a chance de, melancolicamente, tiritar de frio e esperar, de forma também melancólica, senão quixotesca ou borgeana (só o tempo dirá), a pessoa que viria te abrigar deste frio e que compartilharia contigo o que você tem a oferecer, no meu caso, nesta casa suja, porém dedetizada: torradas com maionese de tomates secos, biscoitos água-e-sal, chá-mate com limão e a sensação de se ser um refugiado na segunda guerra numa casa com jornais, revistas e roupas espalhadas por cama, sofá e chão, ainda que em pleno Brasil, Nordeste, Maranhão, São Luís, Vivendas do Turú, mas longínquo de ti...
E eu penso em Satie, Eric Satie, o compositor francês e sua frugalidade: só quando ele morreu seus amigos descobriram onde ele morava, num quarto pequeno com uma cadeira, uma cama, uma escrivaninha e um guarda-roupas com doze ternos, chapéus e sapatos absolutamente iguais entre si. Identifico-me com Modigliani, seu amigo romeno que, com seus quadros sob o braço (não que eu seja artista), percorria as galerias de París em busca de compradores; sou um Modigliani só e por isso muitas vezes definho, muitas vezes anseio por este intermediador entre o mundo e eu, para que eu não estilhace, como o Licenciado Vidreira das 'Novelas Exemplares' de Cervantes, que se julgava de vidro e dormia entre montes de feno no inverno por ser mais 'seguro'; terminei-o de ler estes dias, não sem sentir uma certa solidão, os livros têm sido fiéis companheiros, um pouco mais do que sempre foram. A tv ligada sem som e no som a voz de Zeca Baleiro, sua voz grave diz para irmos para Babylon, será que Babylon não seja São Luís? Estou tentando ser feliz no meu cotidiano. Lamento profundamente todo o tempo que passei chorando na janela. Tenho ido ao cinema, a bucólica Alcântara, andado nas ladeiras dessa cidade, olhado o bater das ondas no mar, enquanto o sol gira, enquanto Baleiro diz que a vida é um souvenir made-in-Hong Kong...Tento me encantar a cada vez que eu vir a olhar uma criança correndo na praia; um jovem skeitista correndo entre as pessoas ,mesas e carros; uma anciã tecendo seu crochet; um pássaro voando no céu; uma formiga na tez pálida da minha mão...
Você sabia que quando o universo entra em coma, os amantes ficam infelizes? As rosas tem espinhos, o amor também. E o amor são esses olhares, esses gestos, esses odores que enviamos sem poder reprimi-los, para que lembremos um do outro. Há pessoas que se atraem e ao mesmo tempo se temem, elas se percebem rapidamente no meio da multidão...
Tenho lido muito sobre feng shui, estou encantado com as mil possibilidades de se energizar uma casa. Quero aprender tarô. Estou mais centrado. Mais místico. Mais introspectivo. Quero algo zen, manso e sem peso, meio auto-conhecimento. Tenho projetos para esse novo ano: fazer uma especialização em Educação Ambiental, que é o que me interessa na Geografia. Fazer uma varanda na minha casa que está aconchegante com plantas, velas, uma fonte, paredes coloridas, cheiro de incenso e das frutas sobre a mesa...
E continua chovendo nessa cidade, como posso escrever sem o encanto do sol? Meu telefone toca. Nunca serei um escritor profissional. Talvez tenha nova inspiração, talvez os dias permaneçam iguais. Não tem importância. E a chuva parece os andamentos, as intensidades de uma sinfonia de gotas, acho um desrespeito à música das nuvens ficar escrevendo aqui e nem dar ouvidos a isto, talvez por isso a intensidade maior. Quem sabe possamos ouvir juntos esta música, breve? Se não, quando chover aí, numa noite silenciosa, essa será a nossa música, que tocará em alguma parte do mundo, e, quando em quando, para ouvidos gratos como os nossos...

Um comentário:

  1. Caro Francisco,

    Que importa ser um escritor profissional? - Continue "amador", que só bem escreve quem tem ou teve amor...

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(Quem dá a volta ao zodíaco comigo...)

EU...

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São Luís, MA, Brazil
Um brasileiro-nordestino, um cara comum, qlq um, como diria Caetano Veloso...